os livros mentem



Há uma passagem nas “Memórias de Adriano” em que ele diz que a palavra escrita o ensinou a escutar a voz humana, tanto como a atitude imóvel das estátuas o ensinou a apreciar os gestos; e que só posteriormente, a vida o fez compreender os livros. Mas, diz ele, ainda os mais sinceros, os livros mentem.

E aponta as razões dessa mentira conforme se trate da escrita dum filósofo, dum historiador, dum narrador ou dum poeta. Diz Adriano que os livros dos poetas mentem porque nos transportam a um mundo mais vasto ou mais belo, mais ardente ou mais doce que este que nos é dado, por isso mesmo um mundo diferente e praticamente inabitável.

Trago aqui esta nota porque partilho dessa visão de que só a vida nos faz compreender os livros.

Penso que é neste “mundo praticamente inabitável” que está a origem de toda a criação poética. Defendo que a poesia vive dessa esperança mínima de trazer a diferença para a realidade e de ir ganhando ar fresco ao irrespirável espaço da utopia, habitando-o.
Aos poetas, visionários ancestrais, cabe a missão de reescrever o mundo, usando a palavra como um buril. É um ofício antigo e sem fim que a alguns castiga com a eternidade, a outros com a loucura. Eles são como o pássaro do mineiro, vão à frente, muito à frente e morrem quando o mundo se fecha à beleza. 
 
Os livros mentem, sim, mas apenas porque serão sempre lugar de horizontes. Os livros são o lugar solene onde a nossa palavra, ou a nossa alma, pode ficar à espera de ser olhada e eu não tenho dúvidas de que quem partilha a alma exerce o mais alto grau da sabedoria.

O que vos dou neste livro são horizontes, cumprindo uma aspiração de juventude: que a vida faça de mim um velho lúcido, tranquilo e com um pouco de sabedoria.


Porto, 19 de Julho de 2014


gil t. sousa



(Este texto foi escrito para a apresentação do meu livro água-forte. Fica aqui à laia de manifesto.)




Comentários

  1. Posso publicar em meu blog? Com os devidos créditos, claro. Obrigado

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  2. Neste "mundo praticamente inabitável" as estrelas perduram.
    "O prestígio da poesia é menos ela não acabar nunca do que propriamente começar. É um início perene, nunca uma chegada seja ao que for." Herberto Helder
    Obrigada pela partilha da beleza.

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